Querida, fazemos anos nesta data

Um ano atrás, o plenário da Câmara amanheceu tomado por cartazes com um chamativo bordão: “Tchau querida”. A frase fora ironicamente retirada de uma conversa telefônica entre a então presidente Dilma Roussef e o ex-presidente Lula. A gravação mostrou-se ilegal, a despeito de ter sido planejada e realizada pela operação Lava Jato. A história rasileira ia sendo contada a partir de ações cuja legalidade estava em questão, mas que ninguém teve tempo ou vontade política para contestar.

O importante é que, no dia 17 de abril de 2016, sob clima de festa, começava o julgamento que tiraria do poder a primeira presidente mulher eleita no Brasil; presidenta como ela gostava de corrigir. A frase emitida pelos congressistas, naquele fatídico dia, tinha performance machista e jeitinho afinado com os deputados que a emularam; todos vestidos de forma monotonamente igual, com seus cabelos tingidos e alisados, e cores de pele e situação social muito aparentadas.

A memória costuma ser curta, mas dessa vez o tempo passou ligeiro demais. Tanto que há de ter ficado preso a uma história que parecia morar no passado; daqueles cuja lembrança achamos por bem apagar. Os termos mais usados pelos deputados que participaram do ritual que autorizou a abertura do processo do impeachment – o segundo no país – foram Deus e corrupção; o primeiro emitido 65 vezes e o segundo apenas cinco vezes a menos. Em mais um exercício de recordação curta, evoco a frase do então Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que pediu a “Deus” que tivesse “misericórdia dessa nação”, e, confiante, votou “sim”. Se Dilma conheceu, desde aquela data, uma aventura em queda livre, o certo é que Deus não tratou de proteger a nação e muito menos boa parte dos deputados dessa instituição. A partir daquele momento, conheceu-se um processo acelerado de acusação sem paralelos na história nacional. Nem nos momentos mais agudos de crise, aqueles que anunciavam, por exemplo, o final eminente do Império do Brasil, nos idos de 1889, o agito político foi sequer parecido.

Para se ter uma ideia da rasura atual, depois das denúncias recentes da Odebrecht, 39 deputados da Casa, 31 deles tendo votado pelo “sim” ao impeachment, estão ameaçados de perder seu assento; suspeitos de uso de Caixa Dois e da desdenhosa corrupção. Gostaria de propor mais um exercício de história imediata. Eduardo Cunha, logo após o PT decidir votar o início de seu próprio processo de cassação, aceitou o pedido que já rolava na Câmara, pelo impeachment de Dilma.

Hoje, com seus direitos cassados, amarga uma condenação de 15 anos na prisão, e sua mulher está ameaçada de também compartilhar aposentos gradeados. Bruno Brandão, que não tinha qualquer expressão até aquele exato momento, jogou na conta de Deus a (boa) sorte de dar o voto decisivo a favor do impeachment: o de número 342. Foi içado pelos colegas, assumiu pinta de super-herói, postou forte a voz para não deixar o momento escapar-lhe das mãos. A sorte rolou: hoje ele está na malha fina da Lava Jato, com a suspeita de ter recebido a bagatela de 600 mil da Odebrecht. A deputada Raquel Muniz no momento de conferir o seu “sim”, aproveitou os holofotes para fazer discurso apaixonado pelo marido, o então prefeito de Montes Claros. Nesse caso, o destino nem teve tempo de pedir passagem; Ruy Muniz foi preso um dia depois, após ser acusado de favorecer o hospital da família e de fazer uso privado da verba pública. Teve até festa de carnaval, com o deputado Waldimir Costa jogando confete no plenário antes de dar seu voto de “sim” – contra Dilma e o PT, disse ele.

Três meses depois, não houve serpentina que desse jeito: seu mandato foi cassado por

causa do uso de “verbas não declaradas”.

Há também quem tenha se livrado da métrica justa do juiz Moro, mas

escorregado nas suas próprias incontinências. O deputado Jair Bolsonaro, aquele

mesmo que homenageou o coronel Brilhante Ustra, foi denunciado por dizer em

público que quilombola “nem para procriar serve mais”. Mesmo assim, é candidato

declarado à presidência com, no momento, 9% de intenção de votos. Aécio Neves,

que concorrera com Dilma à eleição presidencial, é hoje suspeito de corrupção ativa e

passiva, lavagem de dinheiro e fraude em licitação. Vai ter que dobrar um riscado

para poder se livrar dessa lista pesada. Enfim, os exemplos são muitos e se

multiplicariam de forma irritantemente regular, incluindo políticos de quase todos os

partidos nacionais. A verdade é que o fantasma da corrupção, grande inimigo da

democracia, não foi abatido apenas tirando-se a presidente do poder; ele provou estar

arraigado no coração de nosso sistema político.

Enfim, se é certo que os nossos políticos, de uma forma geral, não têm vivido

momentos particularmente brilhantes, dando todo tipo de mau exemplo, também

parece que a roda resolveu girar demais: 360 graus. De um lado, levou a acreditar

que, de tão ruins, todos políticos fossem inúteis por definição e uso. A seguir esse tipo

de pensamento, seria melhor contar com “administradores”; isso supondo-se que eles

representassem a “neutralidade” entre nós ou fossem anti-políticos necessários. O

impacto imediato traz, porém, um saldo muito negativo, uma vez que tem a

capacidade de colocar sob suspeição a própria vida política. O problema é que não há

como prescindir de políticos e da política. Melhor seria se pudéssemos separar as

esferas: punindo os corruptos, mas reconhecendo que partidos são indispensáveis à

nossa vida democrática. Além do mais, criar e sustentar instituições fortes, estáveis e

consolidadas é ainda o grande desafio de qualquer nação que se defina e entenda

como democrática.

A consequência é que andamos inundados por uma onda dogmática e

normativa – do tipo, “eu conheço um corrupto a meu lado”. Com ela vai se

associando uma marola de ódio, cujo risco é a ruptura institucional ou o

fortalecimento de candidatos com perfil isolado de “salvadores da pátria”. Mais uma

vez, preferimos acreditar no poder mágico de uma figura individual, descolada do

processo mais amplo, o que, em geral, resulta em novo naufrágio.

Mas anunciei “de um lado” e agora quero me deter no “outro”. Nessa sanha de

tudo ceifar, a mentalidade vigente parece ser aquela que acredita que, uma vez que

começamos a derrubar, melhor será detonar tudo; incluindo-se nessa receita a própria

Constituição. O raciocínio é em tudo paradoxal: se nossos parlamentares não servem

nem ao menos para esquentar cadeira da Câmara, por que raios acreditar que sairia

desse ambiente uma série de tribunos capazes de rever os termos da nossa lei? Se há

algo de que nós brasileiros podemos nos orgulhar é dos capítulos especialmente

escritos na Constituição Cidadã, criada em 1988. Nela defende-se no seu artigo 3 o .,

que parece resumir seus objetivos mais consolidados, “construir uma sociedade livre,

justa e solidária”.

O novo texto constitucional tinha a missão de encerrar a ditadura, o

compromisso de assentar as bases para a afirmação da democracia no país e a

preocupação de criar instituições robustas o suficiente para suportar crises políticas e

estabelecer garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e das liberdades

dos brasileiros. Não foi pouco. Essa é a mais extensa Constituição brasileira – com

320 artigos. É também a única escrita no decorrer do mais democrático debate

constitucional da história do país. Durante um ano e oito meses o Congresso se

transformou no centro da vida pública nacional e a sociedade se organizou para

participar do debate constitucional em associações, comitês pró-participação popular,

plenários de ativistas, sindicatos. Surgiram várias formas de manifestação; a mais

inovadora, as “emendas populares”, abarcava todo tipo de temas e funcionou como

um instrumento de democracia participativa – ao final do processo foram

encaminhadas 122 emendas à Constituinte, contendo mais de 12 milhões de

assinaturas.

Como o Brasil e como a própria Democracia, a Constituição de 1988 também

é imperfeita. Envolveu movimentos contraditórios, embates formidáveis entre forças

políticas desiguais e algumas vezes errou de alvo. Conservou intocada a estrutura

agrária, permitiu a autonomia das Forças Armadas para definir assuntos de seu

interesse, derrotou a estabilidade no emprego e a jornada de 40 horas, manteve

inelegíveis os analfabetos – embora tenha aprovado seu direito de voto. E, fruto de

seu inevitável enquadramento histórico, nasceu velha em seus capítulos sobre o

sistema eleitoral.

Desses “poréns” ainda sofremos. Mas, a despeito de suas precariedades, a

Constituição de 1988 é a melhor expressão de como o Brasil, sem tirar o olho do

passado, estava firmando um sólido compromisso de futuro. Seu texto final é

moderno nos direitos, sensível às minorias políticas, avançado nas questões

ambientais, empenhado em prever meios e instrumentos constitucionais legais para a

participação popular e direta, determinado a limitar o poder do Estado sobre o cidadão

e a exigir políticas públicas voltadas para enfrentar os problemas mais graves da

população.

Pagamos também um preço alto. A maratona da Constituinte consumiu 341

sessões e dividiu o PMDB entre dois grandes grupos autodenominados

“Progressistas” e “Centro Democrático”, o chamado “Centrão”, um bloco

conservador que, a rigor, ia além do próprio partido. O antigo PMDB das lutas contra

a ditadura se esfarelou. O “Centrão”, que levava quase a metade da bancada,

expressava nova correlação de forças. Começava então um processo de remodelação

conservadora no PMDB que o faria enrolar suas bandeiras históricas e dar ensejo ao

fenômeno do “pemedebismo”, sua principal característica até hoje: a formação de um

enorme bloco de apoio parlamentar ao governo – seja ele qual for e seja qual for o

partido a que esse governo pertença. Seu único ideal é permanecer no poder e é isso

que temos assistido na atualidade, com o “baixo clero” no poder.

O racha interno foi inevitável e, em junho de 1988, em Brasília, um grupo de

dissidentes da ala esquerda do PMDB anunciou a criação de um novo partido, de

cunho socialista e democrático: o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

Como a quase totalidade dos partidos brasileiros, o PSDB também foi criado por

políticos profissionais e sua bancada inaugural reunia 8 senadores e 40 deputados

representando 17 estados da Federação.

Falta mencionar a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), que já em

1980 representou a invenção de um partido de massas que se organizava de baixo

para cima, estava disposto a incorporar a experiência de luta dos sindicatos operários

e dos movimentos populares, e pretendia obter capilaridade social nas periferias das

cidades e na área rural. Na sua origem estavam, além do movimento operário e

sindical, uma ala da Igreja Católica com inserção popular, sobretudo através das

CEBs, os remanescentes de organizações das esquerdas armadas, os grupos

trotskistas, além de um grupo de artistas e intelectuais, em geral de formação

socialista e críticos do modelo comunista soviético ou chinês.

E assim ficavam formados os três grandes partidos do momento e que

jogariam essa partida como se estivessem num tabuleiro. E estavam. Esquerda e

direita são termos polares, e, no caso brasileiro o fortalecimento de um grupo sempre

levou ao enfraquecimento de outro. No centro da partida estava o PMDB, procurando

tirar vantagem do resultado que fosse.

Se democracia é processo inconcluso, o nosso não escapa à fórmula. Cabe, no

entanto, a todos nós corrigir imperfeições; não limpar as mãos como Pôncio Pilatos

ou jogar a pedra no vizinho. É evidente que o fato de nossos três principais partidos

estarem praticando o pior tipo de política tradicional, tendo prometido o oposto do

que entregaram, nos envergonha e é preciso acompanhar esse momento da história

nacional de forma vigilante. Ainda assim, é bom relembrar que foi com esses mesmos

partidos que durante 30 anos conseguimos ampliar o direito de voto e incorporar 144

milhões de eleitores; quase 70% da população. Isso sem esquecer que nossa

democracia ainda está dentre as maiores do mundo, dividindo espaços com Índia e

EUA.

É pouco se usarmos o binóculo que aproxima; é bastante se invertermos o lado e observarmos a realidade com uma lente que permite ver ao longe e na distância.

Hora de criticar e fiscalizar o mundo da política, mas defender a existência de

instituições e de profissionais éticos, que nos representem. Hora de defender, também,

a nossa Constituição. Vou inverter, e de certa forma desautorizar, o provérbio: “antes

acompanhados do que sós”.

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