Práticas de subalternidade: uma visita ao ateliê de Diamantina
São muitos os exemplos que servem para ilustrar esse tipo de afirmação.
Gostaria de me concentrar, porém, em um apenas um, e que pode ser visto numa
exposição recém aberta no Instituto Moreira Salles. Estou me referindo à mostra
em torno da obra do fotógrafo Chichico Alkmin, que viveu em Diamantina, Minas
Gerais, de 1886 a 1978, e manteve um ateliê desde o ano de 1912. São 5500
negativos de rara beleza e que tem o poder de carregar o público
contemporâneo rumo a um Brasil do pós-escravidão, um país republicano e sem
escravos legais, que prometia a inclusão mas que entregou muita exclusão social.
A clientela do nosso fotógrafo parece ser não só variada, como bem
animada. Em seu acervo estão, em porções equilibradas, a paisagem mineira,
cenas das elites e da sociabilidade local, o cotidiano de uma alfaiataria, a
organização das escolas, freiras e padres com suas vestes imponentes, as ruas da
pacata cidade, e muitos retratos das gentes de Diamantina.
Dentre os clientes de Chichico constam não apenas os proprietários locais
ou aqueles mais aquinhoados. O fotógrafo flagra com suas lentes uma população
afrodescendente, que já lutara e conquistara o direito à liberdade. Por isso, ao
invés de aparecerem de forma vitimizada, esses clientes posam de maneira
orgulhosa. Em algumas das fotos aparecem sorridentes, em outras mais tristes. O
certo é que estão sempre comprometidos com as imagens que pretendem legar.
Não há como saber se as roupas que ostentam pertencem aos próprios
fotografados ou fazem parte das indumentárias oferecidas no ateliê de Chichico.
Ter vestuários à disposição dos clientes era prática comum na época, e não
soaria estranha uma oferta desse tipo. Chama atenção, também, a pouca variação
nos panos de fundo. Aliás, um deles parece ser o predileto da clientela. Nele
vemos uma escada falsa, uma coluna, flores pintadas e um cortinado elegante. O
que também não escapa do conjunto das fotos é a cadeira em estilo que lembra o
colonial, estrategicamente disposta para que o retratado se apoie e a foto não
saia tremida. Cumprindo a mesma função, por vezes uma balaustrada, que
respinga o neoclássico, serve de apoio para o braço e de segurança para o corpo
exposto do cliente. Os ternos usados pelos modelos parecem, por vezes, justos;
as calças um pouco curtas e os vestidos engomados demais. Em algumas das
imagens, um certo mal estar quase denuncia a artificialidade das roupas
emprestadas para a ocasião. Em outras tantas, o grupo demonstra a dignidade
de quem porta suas próprias vestes, como se fossem troféus de condição.
Em alguns exemplos, famílias extensas posam para a foto. Há também
grupos de moças ou rapazes, todos bem vestidos e encarando diretamente o
profissional. Um oficial da polícia, com seu quepe bem postado à testa e
folgadamente sentado, deixa ver suas botas lustrosas. Sua esposa, de pé como
manda a convenção, é ladeada pela filha. Um singelo colar de pérolas lhe cai
discretamente pelo pescoço. Já a rebenta, de meia branca puxada até os joelhos e
sapato boneca igualmente branco, olha para a câmara e mantém o corpo ereto ao
lado da mãe: ambas com seus vestidos muito brancos em diálogo com a cor de
suas peles.
Um mesmo grupo se subdivide em duas fotos diferentes; são todos
afrodescendentes. Em uma das imagens, os rapazes contracenam com três
moças. Uma delas traz a expressão tristonha e destaca-se frente às outras que
esboçam um sorriso largo. Na outra fotografia, lá estão os mesmos dois moços,
agora formando um grupo de quatro. Trocaram de vestimentas e de sapatos, e
estão muito sérios dessa vez. Tudo combina com a indumentária rigorosa:
jaquetões e sapatos bem engraxados. Já o fundo de foto continua
monotonamente igual: lá está o mesmo painel, o vaso com arbusto, a coluna e o
cortinado. Vários componentes de uma banda de jazz local estão reunidos para a
ocasião e são todos afrodescendentes. Se na banda da escola de Diamantina os
negros são poucos; já os arlequins são todos brancos.
Há também fotos tristes. O oficial negro com sua esposa mais clara posam
junto a seu “anjinho”, que é o termo que se utiliza nos casos de crianças que
morrem ainda novas, sem que sua identidade tenha tempo de aparecer ou
vingar. Do lado do casal, quem sabe esteja um outro filho, descalço, e que aparece
na foto por mera coincidência. Na verdade, ele borra a imagem com seu
movimento inesperado e que há de ter escapado ao fotógrafo.
Chichico Alkmin não clica apenas negros. Chamam atenção a quantidade e
a qualidade das imagens envolvendo afrodescendentes. Olhares profundos,
flores nos cabelos, batom nos lábios, cabelos penteados, vestidos caprichados,
cabelos bem partidos e sapatos brilhantes, aí está um mundo do pós abolição que
vai se apresentando na sua multiplicidade, elegância, sinceridade e integridade.
Mas há uma foto, em especial, que literalmente rouba a atenção. Não por
acaso ela está destacada no catálogo e na exposição do IMS.
Como na maioria das imagens do ateliê de Chichico, o fotógrafo não
aparece. É ele quem está por trás da ação central, captando uma família de elite
que posa solenemente para a foto. O pai, sentado, traz o seu relógio de bolso –
um símbolo das elites brasileiras que gostam de portar ares aristocráticos –bem
guardado no jaquetão. Apenas sua corrente se sobressai na indumentária escura
e elegante, aliás como manda o figurino de época. Ele ostenta, ainda, sapatos à
moda, gravata com nó bem feito, camisa de gola alta e olha direto para as lentes.
Sua mulher, de pé, apoia o braço na cadeira atrás dele. Traz o cabelo preso e
somente uma pequena mecha lhe cai, estrategicamente, à testa. No colo do pai,
está a filha pequena, com cara de choro. Ela deve ter dado trabalho na hora da
foto. Tanto que a mão do pai parece estar crispada e tensa. Diante da mãe,
aparece um garoto. Com suas calças curtas e brancas (contrastando com os
sapatos e as meias pretas) ele não deve ter achado graça alguma na atividade.
Tanto que leva a mão à testa, entre contrariado e vexado. Aqui os pares,
masculinos e femininos, andam trocados e a família mostra como o futuro lhes
pertence. Com suas roupas distintas, os quatro correspondem à imagem da nova
família burguesa, bem enquadrada na foto do ateliê.
Nesse caso, porém, o tempo tratou de pregar uma peça, deixando as
marcas do processo fotográfico. O painel, que deveria preencher todo o fundo da
foto, acabou registrado, por deslize, de forma tacanha. Ele é mantido ereto por
duas figurantes anônimas, ao menos nessa cena. Ou seja, elas não fizeram parte
da concepção original desse retrato, em que apenas a família deveria figurar no
álbum de memória.
A esposa do fotógrafo–Maria Josephina Netto, a Miquita –, seu braço
direito no ateliê, é quem segura o pano de fundo. Ampliando-se a foto, é possível
notar como ela traz uma aliança no dedo anular da mão esquerda; a mesma que
segura o que parece ser uma criança (quem sabe a filha do casal), que está
definitivamente excluída da foto. Tanto que só um terço do seu corpo é captado
pelas lentes. Na outra extremidade, e cumprindo a mesma função de apenas
manter o painel ereto, está uma menina negra, um tanto descabelada e descalça.
Sua imagem é muito distinta dos demais retratos de Chichico. O vestido que usa é
também branco. Nesse caso, porém, ele se encontra sujo e cheio de manchas.
Além do mais, seu olhar é um tanto entristecido e até evasivo. Tudo nela destoa
de outros figurantes afrodescendentes, imortalizados pelo fotógrafo, com suas
vestes imaculadamente brancas, roupas refinadas, cabelos penteados e
expressões decididas e compenetradas.
Não me cabe aqui discutir a capacidade técnica de Chichico, que é
inegável. Também não parece o caso de “julgar” essa bela imagem. Gostaria
apenas de ficar com o “acaso”. Nem sempre o fotógrafo controla a memória de
seu ateliê: o que resta dele e fica como testemunho. Nesse exemplo, o tempo fez
mágica e perenizou ou que poderia ser reconhecido como uma política
premeditada, apesar de indireta: uma política da invisibilidade.
Não parece mero deslize o fato da esposa do fotógrafo e a menina
afrodescendente encontrarem-se “camufladas” na foto. “Esposas” não poucas
vezes apareceram “ao lado” ou “subjugadas” a seus maridos; esses sim cientistas,
escritores, arquitetos, médicos, pintores, empreendedores e fotógrafos
“renomados”. É por isso que essa foto devolve, simbolicamente, o que se impõe
na prática, por meio do consenso e de hábitos arraigados: a intenção de
subalternidade. Por outro lado, se, a essas alturas, a escravidão legal já havia
sido abolida há pelo menos duas décadas, continuava vigente um Brasil desigual
e hierárquico, que tratava “garotos e garotas da casa”, em sua imensa maioria
negros, como trabalhadores sujeitos à faina diária.
A memória anda sempre às turras com a história. Nesse caso, ela
aprontou com a história. Trouxe para o primeiro plano o que nasceu para figurar
no segundo. Como um escandaloso segundo plano.
PS: Agradeço a Helouise Costa pela gentileza de ter me mostrado, pela primeira
vez, essa foto. Ela sim é uma grande especialista na fotografia, desenvolvendo, no
momento, um trabalho exemplar sobre as profissionais dessa arte, que não raro
permanecem “escondidas”, “transparentes”, por detrás das fotos e dos
fotógrafos. Como Miquita.