Com quantos “acasos” se faz uma pesquisa

Mas se são sempre muitos os “infortúnios”, não há investigador que deixe de contar com alguma boa sina. No meu caso, fui bafejada pela sorte logo no início do trabalho sobre Lima Barreto.

A história quis que o pai do escritor, João Henriques de Lima Barreto, fosse um dos primeiros desempregados da República. Em virtude de sua ligação com o poderoso visconde de Ouro Preto, e de seu trabalho como tipógrafo num jornal monarquista, fechado com o final do Império, João Henriques se viu sem emprego e como arrimo de família, com filhos pequenos para cuidar (já que sua mulher falecera vítima da tuberculose). Ele se valeu, então, dos pistolões que tinha e, em 1890, obteve o cargo de administrador das “Colônias de Alienados”, nome do manicômio que havia sido recém-criado na ilha do Governador.

Lima deixou relatos lindos sobre seus dias passados no lugar. Embora estudasse na capital durante a semana, mal via a hora de tomar a barca aos sábados. Por lá corria solto pelas matas, caçava passarinho, e aproveitava para socializar com os pacientes da instituição manicomial.

Foi assim que, nos idos de 2008, vestida com uma espécie de capa de Sherlock Homes, resolvi que queria começar pelo início. Iria até a ilha do Governador rever, com meus próprios olhos, um pouco da infância do autor de Policarpo QuaresmaCom uma certa “pose” de investigadora, os documentos necessários e as referências fundamentais, esbocei meu “mapa do tesouro”. Junto comigo estavam dois pesquisadores, amigos meus: Pedro Galdino e Lucia Garcia. Imaginei, então, um programa aventuroso, com direito a tomar a “lancha dos loucos” e desembarcar precisamente no lugar. Mas os tempos eram definitivamente outros, e hoje a ilha se encontra ligada por terra ao continente. Então, fomos de carro e estacionamos no local demarcado. Seguindo sempre nossas “trilhas”, demos de cara com um imenso portão gradeado. Estávamos na sede do Parque de Material Bélico da Aeronáutica do Rio de Janeiro, uma região que cumpre função por demais estratégica para acolher pesquisadores curiosos e desavisados apenas.

Graças, porém, à intervenção generosa da então tenente Gralha, que hoje é a capitão Andrea Gralha, consegui permissão para entrar (depois de levar um pito justo, do tipo, “quem você pensa que é”) e ver a velha casa de Lima. Lá estava ela, no alto de uma pequena colina, conforme descrevia o menino em seu Diário. Já naquela ocasião, há oito anos, encontrava-se bastante alterada, com um puxadinho ao fundo e uma sacada na parte da frente. Mas não havia dúvidas: eu estava frente a frente com a residência que, na definição do escritor, fora a única que ele pôde chamar de sua.  

A casa onde Lima morou, na ilha do Governador. A primeira é uma foto da época em que o escritor, ainda menino, morou por lá. As outras duas são mais atuais. 

A boa sorte foi ter encontrado Andrea no meio do meu caminho, ela que de noite trocava a farda e fazia pós-graduação em Memória Social. Estudava justamente a casa de Lima e o sítio do Carico, nome pelo qual era conhecida a região. Esse era também o sítio do Sossego, ou Curuzu, a pequena propriedade que Policarpo, o personagem de Lima, comprou e foi invadida por um poderoso inseto devorador: as formigas. Entrar ou não entrar no lugar era, portanto, uma questão de sorte ou acaso. Contei com ambas e a visita fez imensa diferença para os rumos da pesquisa, tanto que acabo de voltar ao local para marcar uma espécie de término ritual da investigação.   

Por essas e outras é que fazer um projeto de pesquisa desse tamanho e proporção não é empreendimento solitário, realizado por um dom Quixote isolado, sempre pronto a combater moinhos. Diferente da imagem da investigadora audaciosa, que tem uma ideia genial por dia, estudos como esse só se fazem em boa companhia. Aliás, não foram poucos os especialistas que me antecederam, a começar por Francisco de Assis Barbosa, que na década de 1950 basicamente ressuscitou Lima Barreto com sua biografia e a coleção que criou para a editora Brasiliense. Nela, publicou romances, contos, crônicas, artigos e ainda organizou os dois diários do autor. Depois dele, historiadores e críticos literários como Antonio Arnoni Prado, Beatriz Resende e Nicolau Sevcenko, para fazermos de uma longa lista apenas uma mostra rápida, trataram de dar continuidade ao empreendimento, tornando o criador de Isaías Caminha um escritor fundamental. Hoje posso dizer que são muitos os estudiosos que se interessam pela vida e pela obra de Lima, o qual, depois de uma escandalosa ausência, vai finalmente virando parte de nosso cânone literário e um intérprete incontornável desse país, que lhe incutia tanto afeto como crítica. Uma nação que inspirava muita utopia, depois de ter abolido a escravidão legal em 1888 e inaugurado a República em 1889, mas continuava preconceituosa, racista e desigual.

O certo é que, de uma maneira ou de outra, jamais estive só durante a elaboração do livro. Seis pesquisadores trabalharam comigo — cada qual num momento distinto. Na verdade, incluíram seus próprios interesses, e assim tornaram a biografia mais plural. Lucia Garcia acompanhou-me nos momentos iniciais do trabalho, ainda em 2008. Vibrou como só ela sabe. Pedro Galdino começou a atuar na investigação em janeiro de 2011 e nunca mais a deixou. Até o fechamento do livro ele seguiu, voluntariamente, comentando cada capítulo e achando novos documentos. Aposto que quando for ler este post ele terá novas fontes para indicar. Pedro Cazes esteve a meu lado de 2013 a 2015, e me fez entender melhor o que eram os subúrbios cariocas e como a linha de trem era limite importante na vida de Lima. Além do mais, entrou comigo nesse mundo do anarquismo da Primeira República, um tema que ainda reclama por mais pesquisa e que, tenho certeza, ele dará jeito de explorar. Paulinho Maciel é também investigador de mão-cheia. Desde o final de 2015 até 2016 descobriu documentos que pareciam impossíveis de encontrar, jamais negou trabalho ou interpretação, e me explicou o quanto a crítica teatral foi importante na vida de Lima (e de todos nós). Paloma Malaguti juntou-se à equipe entre 2016 e 2017 e me acompanhou até o fechamento da biografia. Fez de tudo um pouco e não deixou que eu desanimasse, jamais. Até excursão para Todos os Santos ela organizou! No final do trabalho, por obra da sorte, encontramos seu tio, “o pintor Malagutti”, dentre os amigos de Lima. Todos esses grandes investigadores são cariocas, entendem da escrita, com sotaque, desse escritor do Rio de Janeiro e do Brasil, e viraram grandes amigos, desses que a gente leva conosco. O mesmo acontece com Sonia Balady que está por perto desde 2009 e fez o possível e o impossível para organizar as notas, as imagens, a bibliografia e as citações do livro. Ela sabe, como ninguém, sistematizar dados, apoiar e trabalhar junto.

Se essa biografia de Lima fizer algum sentido, ele terá vindo desse espírito de grupo, da inspiração que fui coletando durante o caminho: dos investigadores que me antecederam e de outros tantos que encontrei no meio do percurso. Obra do “acaso” e das histórias dentro da história que um livro tem para contar. Evaldo Cabral de Mello certa vez disse que a história é “como a casa do senhor: tem muitas portas e janelas”. Talvez por isso todo cientista social guarde um lado de desbravador e outro de síndico. É preciso percorrer as frestas que forem se apresentando, mas também tratar de cuidar bem do edifício que se quer construir. Abrir e fechar trajetórias é do que aqui se trata. Terminar um projeto de vida como este significa, ao mesmo tempo, um grande alívio mas também uma forma de luto. É como deixar de dormir e sonhar acordada; acompanhada por todo tipo de presença e assombração.  

P.S.: No último post que completa esta série de quatro textos que antecedem a publicação do livro Lima Barreto: triste visionário vocês terão oportunidade de saber mais sobre outra imensa “sorte” com que contei ao escrever essa biografiaTive o privilégio de conviver com a equipe competente e amiga da Companhia das Letras que me acompanhou, interpelou, amparou, deu força, desafiou em todos os momentos de elaboração e fechamento do texto. Esteve comigo também por ocasião da publicação desses artigos. A eles agradeço a “boa Companhia”.  

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* Foi a antropóloga Alba Zaluar quem me ensinou e escreveu que “todo antropólogo tem seu dia de Otário”. 

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